Problema |
Além das expressões da questão social que envolve as situações de indigência, pobreza e de desigualdades sociais, verificam-se na realidade brasileira acentuadas situações de risco pessoal e social em decorrência de abandono, maus-tratos físicos e/ou psíquicos, violência sexual, uso de substâncias psicoativas, situação de rua, risco por viver em territórios degradados, risco de vivência institucionalizada, ato infracional, entre outras que caracterizam o fenômeno da exclusão social. Pela própria organização de alguns contextos, as famílias podem estar particularmente expostas a tensões externas que fragilizam seus vínculos, tornando-as mais vulneráveis. A violência, a discriminação e a falta de acesso às políticas sociais básicas - aspectos, relacionados à própria estruturação da sociedade brasileira - acabam repercutindo sobre a possibilidade de uma convivência familiar e comunitária saudável. Diante deste quadro, número crescente de famílias vivencia situações de violação dos direitos de seus membros, em especial, de suas crianças, adolescentes, jovens, mulheres, pessoas idosas e pessoas com deficiência.O censo do IBGE de 2000 encontrou, no Brasil, 61 milhões de crianças e adolescentes, havendo maior concentração de crianças e adolescentes nas regiões mais pobres e nas faixas populacionais com menor instrução e menor renda, sendo que 45% destas vivem em famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo. Entre as crianças e adolescentes negras, o percentual de pobreza é ainda maior, respectivamente, representando 58%. De acordo com dados do Ministério da Saúde, violência e acidentes constituem o primeiro fator mais importante de mortalidade no Brasil, na faixa etária de 5 a 19 anos (59%). As agressões ocupam o primeiro lugar nas estatísticas, sendo responsáveis por 40% do total de óbitos. A maioria dos estudos aponta que grande parte dos casos de violência ocorre dentro do ambiente doméstico, tendo como principais agressores o pai ou a mãe. Vale lembrar que tal índice é fortemente influenciado pela violência urbana, associada ao tráfico e ao consumo de drogas, responsável pela maior parte das mortes entre jovens das camadas mais empobrecidas da população. Essa realidade tem impacto direto sobre as relações familiares nas diferentes classes sociais, repercutindo sobre as relações intrafamiliares, o desenvolvimento de seus membros e a relação com o contexto social, em particular a escola . A morte por causas externas na população jovem é de 72%, sendo que 39,9% destas referem-se a homicídios praticados contra os mesmos - na população não jovem a taxa de óbitos é de 9,8%, sendo que destes os homicídios representam apenas 3,3%. O Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresenta os dados sobre as crianças e adolescentes abrigados que indicam que, na maioria, são meninos (58,5%), afro-descendentes (63,6%) e 61,3% têm entre 07 e 15 anos e, ainda que a medida de abrigo seja estabelecida como excepcional e provisória, 52,6% permanecem por mais de 02 anos nessas instituições, e 20% mais de 6 anos.A grande maioria dos abrigados tem família (86,7%), sendo que 58,2% mantêm vínculos familiares e apenas 5,8% estão impedidos judicialmente de contato com os familiares. Apesar disso, vivem em instituições e estão privados da convivência familiar, preconizada na Constituição Federal e no ECA. A investigação dos motivos que levaram esses meninos e essas meninas aos abrigos mostra que a pobreza é a mais citada, com 24,2%. Entre outros, aparecem como importantes, pela freqüência com que foram referidos, o abandono (18,9%); a violência doméstica (11,7%); a dependência química dos pais ou responsáveis, incluindo alcoolismo (11,4%); a vivência de rua (7,0%); e a orfandade (5,2%).Quanto à possibilidade de convivência comunitária, o Levantamento Nacional identificou um quadro preocupante em relação às ações de estímulo à participação das crianças e adolescentes abrigados na vida da comunidade local, pois apenas 6,6% dos abrigos pesquisados utilizavam todos os serviços necessários que estavam disponíveis na comunidade, tais como: educação infantil e fundamental; profissionalização para adolescentes; assistência médica e odontológica; atividades culturais, esportivas e de lazer; e assistência jurídica. A maioria das instituições (80,3%) ainda oferecia pelo menos um desses serviços diretamente, ou seja, de forma exclusiva dentro do abrigo.Outro fenômeno vivenciado nas médias e grandes cidades brasileiras refere-se ao crescente número de pessoas e famílias em situação de rua, que se constitui em um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal. São homens, mulheres, jovens, famílias inteiras, grupos, que têm em sua trajetória a referência de ter realizado alguma atividade laboral, que foi importante na constituição de suas identidades sociais. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, seja a perda do emprego, seja o rompimento de algum laço afetivo, fazendo com que aos poucos fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia. Em relação ao envelhecimento, o Brasil vem conquistando maior expectativa de vida, chegando a 71,59 anos. A esperança de vida vem aumentando, chegando a 16,8 anos para homens e de 19,6 para mulheres aos 60 anos, e de 10,1 anos para homens e 11,1 para mulheres com mais de 80 anos (Dados IBGE, 2000 e CAMARANO, 2006). Nessa perspectiva, o número de pessoas com 60 anos terá um crescimento populacional de 57% entre 2000 e 2020 passando de 8,5% da população para 14,2%. Assim, a taxa de crescimento do número de idosos com 80 anos e mais entre 2000 e 2010 será de 5,8%, enquanto que a da população idosa em geral será de 3,5%.Esse processo de mudança não tem acontecido somente nos aspectos demográficos, mas também epidemiológicos, social e de direitos, exigindo uma leitura apurada da realidade social, identificando e sistematizando as novas demandas, necessidades e contextos na formulação de políticas públicas e sociais. De acordo com pesquisas da OPAS (2003), verifica-se que apesar da maioria dos idosos ter uma vida independente e saudável, a perda de capacidade funcional se acentua com a idade. Dentre as maiores dificuldades destacam-se: vestir-se, comer, usar vaso sanitário, locomoção e mobilização. Outras questões são notáveis, como por exemplo:a) os novos arranjos familiares, os quais têm exigido alternativas ao espaço familiar enquanto referência para o cuidado e acolhida da pessoa idosa (crescente número de famílias ou domicílios unipessoais e a mulher, como cuidadora tradicional, no mercado de trabalho);b) as condições de trabalho e renda que apontam 73,3% dos idosos na faixa de 60 a 69 anos continuam trabalhando, sendo que 63,3% dos aposentados também continuavam trabalhando. Ainda conforme pesquisa da Organização Pan-Americana da Saúde (2003), 67% das pessoas idosas avaliam não ter dinheiro suficiente para as necessidades diárias. c) a violência doméstica e social. |
Justificativa |
No Brasil, há milhares de famílias em situação de vulnerabilidade social, muitas empobrecidas, cuja situação torna-se agravada pelas situações de risco social que atingem o núcleo familiar ou seus membros, exigindo, portanto, atenção diferenciada, especializada, com maior grau de complexidade. Nesse sentido, as ações, em conformidade com a Política Nacional de Assistência Social, devem ser prestadas de acordo com a situação apurada, sendo caracterizadas como de proteção social especial de média e alta complexidade. A proteção social especial de média complexidade refere-se ao atendimento às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cuja convivência familiar e comunitária não foi rompida, o que requer maior estruturação técnico-operacional e atenção mais especializada e mais individualizada. E a proteção social especial de alta complexidade diz respeito à proteção integral para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou comunitário. Além disso, o Sistema Único de Assistência Social - SUAS exige a reestruturação da rede de atendimento, de modo a assegurar a uniformidade dos espaços públicos de atenção socioassistencial, tornando-se urgente a implantação e implementação das unidades de referência com base na oferta e na necessidade das ações pertinentes a esse nível de complexidade. As situações de risco social e pessoal demandam intervenções especializadas e o desenvolvimento de estratégias de atenção sociofamiliar que visem a reestruturação do grupo familiar e a elaboração de novas referências morais e afetivas, no sentido de fortalecê-lo para o exercício de suas funções de proteção, auto-organização e conquista de autonomia, prevenindo o agravamento e a reincidência de situações de violação de direitos e a ruptura de vínculos. Longe de significar um retorno à visão tradicional, e considerando a família como uma instituição em transformação, a ética da atenção da proteção especial pressupõe o respeito à cidadania, o reconhecimento do grupo familiar como referência afetiva e moral e a reestruturação das redes de reciprocidade social. Existe historicamente no Brasil uma cultura de institucionalização e apartação no atendimento a crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência das camadas mais pobres da população, bem como da população de rua. Neste modelo de atendimento tradicional prevalecem práticas que perpetuam medidas asilares e segregadoras, em instituições totais de longa permanência. Tal lógica de atendimento, ainda muito aceito socialmente, desqualifica os usuários e suas famílias; não respeita a individualidade, as potencialidades nem a história do usuário; não preserva os laços familiares e comunitários; revitimiza, ao invés de reparar; viola direitos, ao invés de proteger. Neste contexto, as coberturas históricas que vêm sendo ofertadas pela Assistência Social às necessidades dessa parcela da população ocorriam, via de regra, por meio de instituições totalitárias, cujo código sempre esteve fundado: § na indiferença à individualização e às condições dignas e plenas de desenvolvimento da sociabilidade das pessoas, § na prevalência da ordem austera na organização das rotinas de atendimento, em detrimento de uma ordem flexível e adaptável às intensas mudanças do cotidiano; § na constatação de que a ruptura dos vínculos familiares e sociais tendiam, no limite, a serem inevitáveis. O MDS, a partir da Política Nacional de Assistência Social, vem implementado mudanças nos marcos legais dessas atenções, na busca de rupturas com os preceitos ultrapassados e incompatíveis com uma perspectiva da garantia de direitos e indultora de promoção da autonomia e emancipação dos usuários desses serviços sócio-assistenciais. A mudança de paradigma, preconizada no SUAS, pressupõe que os serviços sócio-assistenciais de atendimento a crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, jovens, mulheres, idosos, população em situação de rua e vítimas do tráfico de pessoas devem deixar de atuar como mecanismo de exclusão social para serem instrumentos de restabelecimento de direitos, que favoreçam o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o desenvolvimento de potencialidades e a conquista de maior grau de independência individual e social, priorizando o convívio familiar à institucionalização. Finalmente, como afirma a Política Nacional de Assistência Social - PNAS, "A ênfase da proteção social especial deve priorizar a reestruturação dos serviços de acolhimento dos indivíduos que, por uma série de fatores, não contam mais com a proteção e o cuidado de suas famílias". |